O século XVI deve ser visto por nós como um período ao mesmo tempo inaugural e experimental. Ninguém sabia ao certo no que tudo aquilo poderia dar. Mas o fato é que, da obra do Governo Geral á expansão da agroindústria açucareira, implantou-se o projeto lusitano para nossos trópicos. Não exatamente dentro das balizas ou dos trilhos planejados pelos portugueses, é claro. Eles pensaram em termos de transplantação cultural, de reprodução imediata do modelo metropolitano, sonhando uma Nova Lisboa em nossas terras. Mas a mestiçagem genética e o sincretismo cultural, que já vinha da aldeia eurotupinambá de Diogo Caramuru, se encarregaram de tecer uma outra realidade, original, na Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo. Assim teve inicio o processo histórico-cultural que fez, de nós, o que somos
Antonio Risério.“Uma história da Cidade da Bahia”
A formação cultural de um povo não se completa nem pode se considerar acabada ou definitiva. Trata-se de uma construção cotidiana em transformação permanente. Quando consideramos a língua portuguesa como único fator agregador e estruturante da formação de uma identidade nacional do povo brasileiro estamos trabalhando com uma perspectiva letrada e eurocêntrica, reduzindo a complexidade de nossa formação cultural a uma questão de idioma. A língua portuguesa unificada em todo o território nacional é sem dúvida herança da concepção absolutista do colonialismo europeu, mas que no hemisfério sul das Américas ganha uma dimensão nova, subvertida e criativa, possibilitando que num país de dimensões continentais os sotaques não impeçam a comunicação entre um gaúcho e um paraense, algo inimaginável no continente europeu, com suas divisões lingüísticas, étnicas e territoriais.
Historicamente consideramos como um marco fundamental da discussão sobre a identidade brasileira em nossa produção cultural a Semana de Arte Moderna de 1922 e toda a produção do modernismo brasileiro advinda deste movimento. Se por um lado a produção cultural modernista ainda estava fadada a adotar uma perspectiva européia, na referência às vanguardas artísticas que surgiam no velho continente naquele momento, por outro lado há que se considerar o caráter transgressor e revolucionário desta que foi a mais relevante experiência moderna na periferia do capitalismo do século XX. O Modernismo Brasileiro encarnou e trouxe para a arte brasileira as cores e os sotaques de nossa gente, inaugurando em nosso país a “tradição de ruptura”, conceito elaborado pelo mexicano Octávio Paz sobre as características da arte moderna. Oswald de Andrade em seu “Manifesto Antropófago” (1928), afirma que a deglutição do bispo Sardinha pelos índios caetés em um ritual antropofágico é o marco fundador da civilização brasileira, muito mais importante que o “descobrimento” de Cabral. A metáfora da antropofagia, devorar o outro para entendê-lo e superá-lo, expressa a relativização das fronteiras e a afirmação da diversidade como característica fundamental de nosso processo civilizatório:
“Só me interessa aquilo que não é meu. Lei do homem. Lei do Antropófago”.
Discutir a formação cultural de nosso povo nos dias atuais vai muito além do modelo de cultura como entretenimento. A concepção mais avançada de cultura se amplia para além das artes consagradas e oficiais, a música, o teatro a literatura, etc. Cultura também é culinária e a maneira que o povo se alimenta, ou o destino que dá ao seu lixo e excrementos. Cultura também é a construção das relações sexuais, de gêneros, machismos ou feminismos. Cultura são relações étnico-raciais positivas, ou os mais variados graus de xenofobia e racismo, enfim, uma gama infinita de aspectos que englobam todas as ações humanas, inclusive e especialmente a ação política.
O caso brasileiro guarda peculiaridades muito particulares. Também que, ao contrário da maior parte dos países do mundo, é justamente na diversidade que encontramos um dos maiores traços de nossa identidade. Darcy Ribeiro diz:
esta auto-imagem expúria, elaborada no esforço de situar-se no mundo, de explicar sua própria experiência e de atribuir-se uma destinação, plasma-se como uma colcha de retalhos feita da junção de troços tomados de suas antigas tradições com crenças européias, tal como eles as podiam perceber desde sua perspectiva de escravos ou dependentes.
Temos ainda toda uma transformação proveniente de outras tantas culturas que nos moldou, desde a Missão Artística Francesa passando pela imigração japonesa, alemã, italiana, judeus no pernambuco sob o regime tolerante de Nassau e assim por diante, e também dos Bantus inicialmente e depois pelos Yorubás, Ausás e também da cultura indígena dos povos originários que está presente em nomes de ruas, culinária, banhos diários, traços fenotípicos acentuados na população diversas regiões do país, que se confundem e se mesclam com os povos latinos / hispânicos que aqui vivem e que também contribuem para nossa contínua transformação cultural.
Mas como podemos falar de identidade nacional do ponto de vista da cultura se ela se transforma cotidianamente? Este é um desafio que teremos para a VI Bienal de cultura da UNE, e também de como podemos tirar direções deste debate do momento histórico que vivemos na atualidade, de perceber que a soberania a partir do conceito de que se dá, dentre outras coisas, pela defesa de nossa fronteira, mas que a cultura ultrapassa esse desejo de fronteira pois diversos traços culturais não estão sub julgados pelo desenho de cada continente, país ou estado.
Então é a partir da contemporaneidade que pensamos o tema da formação do povo brasileiro, de seu paradoxo enquanto uma das maiores nações agrícolas do mundo, mas que no entanto ainda alimenta mal seu povo, da alta tecnologia empregada em nossa recente industria, mas ainda não alcança uma gama considerável de pessoas. Também de nossa refinada cultura erudita, acadêmica em contraponto com nossa cultura de massas, na música na televisão. Seria o anti-herói Macunaíma um exemplo de nosso heroísmo? Bananas ao vento ainda servem para exemplificar nosso instinto tropical? Ainda olharemos a favela com poesia? Mesmo que muitos de nós nunca tenhamos pisado numa?
Vivemos um momento histórico fundamental no que diz respeito à questão cultural no Brasil. Após a ditadura militar vivemos quase duas décadas em que a discussão da cultura esteve ausente do debate dos grandes temas nacionais. O neoliberalismo implementado na década de 90 empurrou a discussão da cultura para o mercado, criando um modelo de financiamento de circulação cultural extremamente concentrador no qual os principais beneficiários foram as grandes corporações da indústria do entretenimento ligadas ao sistema financeiro. O governo Lula recolocou a cultura na agenda política do país e abriu janelas para que outros agentes culturais se colocassem neste debate. No entanto vivemos agora um momento chave, em que ou se avança ou se retrocede. A sociedade brasileira é chamada a se posicionar politicamente no sentido da construção de um projeto cultural para o Brasil. E a juventude e os estudantes brasileiros devem ser protagonistas deste processo, neste sentido esta VI Bienal deve travar também o debate sobre as políticas públicas de cultura no Brasil.
Por essas e outras razões queremos reunir nesta Bienal uma grande quantidade de intelectuais, estudantes, fazedores de cultura de diversas naturezas como forma de obter um bom panorama do fazer cultural de nosso país e de suas diversas influências sejam recentes ou antigas.
Viva o povo brasileiro
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